Fernando Barriga

Setembro 2023








RECURSOS MINERAIS

SÓCIO APG Nº O037


Nasceu em Lisboa. O pai queria que fosse para direito, mas ele preferiu ir direitinho descobrir 'a história que os minerais contam'. Fernando Barriga, o Explorador, foi professor na FCUL e considerado um dos oito 'Senhores dos Oceanos'. Sente-se privilegiado por todas as oportunidades profissionais que experienciou.

" Como é que era possível que um geólogo e, sobretudo, um mineralogista ser daltónico? Porque muita gente classifica os minerais pela cor (...) a celestite para a maioria das pessoas tem de ser azul. Mas não (...) Como é que eu faço, sem recorrer à cor? É simples. Tem a clivagem, tem a forma, tem o hábito, tem a dureza, tem a densidade, tem uma série de propriedades que permitem chegar à identificação daquele mineral ou pelo menos chegar ao grupo "

Foi onde tudo começou, há mais de cinco anos, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, que fomos ao encontro de Fernando Barriga, o explorador. Pedinchou minerais, desmontou gira-discos, bateu a portas eruditas, infiltrou-se em saídas de campo alheias: ousadia e, já que estamos numa de recursos metálicos, uma grande lata, foram diaclasando o caminho de um dos grandes nomes da mineralogia portuguesa. Assumidamente mimado pelos senhores da Geologia cá dentro e lá fora, até se tornar ele mesmo um deles. Desafiou o status quo do seu tempo dedicando-se à "Geologia impura" e, quando o que estava emerso já não dava pica, mergulhou e fez-se um dos "Senhores dos Oceanos". Venham conhecer as aventuras terrestres e submarinas do Fernando, o mineralogista daltónico, porque afinal, que importa a cor... até dizem que antigamente o mundo era a preto e branco. E nós gostamos do que é antigo!


Entrevista 

Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Lisboa, julho de 2022


1. Diga-nos o seu nome, data e local de nascimento.

O nome completo? É muito comprido. Fernando José Arraiano de Sousa Barriga. O Arraiano é da Beira Baixa. O Sousa Barriga é do Alentejo. Nasci a 29 de setembro de 1951, já foi há mais de cinco anos. Nasci em Lisboa. Prosaicamente, na Charneca.

2. Conte-nos, como se fosse para leigos, o que fez profissionalmente.

Eu interessei-me desde cedo por temas com relevância social para as pessoas. Costumava dizer que não queria doutorar-me sobre "os problemas psicológicos das baratinhas coxas". E, portanto, queria fazer ciência aplicada. O que, quando eu era estudante de licenciatura, não era evidente para toda a gente que fosse a melhor maneira de fazer as coisas. Havia quem defendesse que havia dois tipos de Geologia: a Geologia pura e a Geologia impura...

3. A aplicada?

Evidentemente. Porque mexia com dinheiros, com a parte económica, e isso já não competia ao geólogo. O que competia ao geólogo devia ser apenas a ciência pura. Obviamente, nem toda a gente pensava assim. Mas havia gente muito influente que pensava desta forma.

4. E isso levou-o a fazer o quê?

Derivado do meu interesse pela mineralogia - pois comecei a interessar-me pela profissão de geólogo através da mineralogia e posso contar essa história, que tem a ver com o professor do ensino secundário - e pela Geologia com relevância, a aplicada, interessei-me pelos jazigos metálicos. Com a intervenção do António Ribeiro, do Delfim de Carvalho, do Ricardo Quadrado e do Carlos Matos Alves, fui impelido a preparar o meu doutoramento sobre os jazigos de Aljustrel. Este foi o primeiro passo. Mas depois interessei-me por várias outras coisas, inclusive por solos artificiais, porque é um dos problemas do nosso tempo: a questão dos solos aráveis. Segundo um dos relatórios das Nações Unidas, temos solos aráveis para mais 60 anos, se continuarmos a fazer as coisas como até agora. Em colaboração com o meu orientador - também já vamos falar mais adiante desse orientador de doutoramento e grande amigo, o Bill Fyfe - criámos uma equipa para extrair lamas das albufeiras das barragens. E descobrimos que essas lamas, no sul de Portugal, são férteis… são adubo, autenticamente. Depois fizemos um estudo semelhante no Brasil, com algumas das maiores albufeiras do mundo, e lá as lamas não eram tão boas, porque são mais lateríticas. Mas mesmo assim dão para usar como solos.

5. Então, teve sempre um interesse na mineralogia pela sua aplicação abrangente, ao serviço da sociedade?

Sim, exatamente.

6. Diga-nos em que ano e onde é que ingressou em Geologia?

Eu ingressei em Geologia em Lisboa, neste edifício onde estamos [Museu Nacional de História Natural e da Ciência]. E foi em 1968.

"Havia quem defendesse que havia dois tipos de Geologia: a Geologia pura e a Geologia impura..."

7. Estávamos há pouco a falar da mineralogia. Foi esse o seu primeiro contacto consciente com a Geologia? Foi a ver minerais?

Foi a ver minerais, mas foi no liceu, não aqui. Porque tive um professor que era geólogo, o que nem sempre acontecia. O professor de ciências naturais ser geólogo, pelo contrário, era raro. Mas este professor, que se chamava António Martins Ferreira, pôs-nos a fazer uma coleção de minerais. De todos os minerais que vinham no livro de mineralogia, tínhamos que arranjar uma amostrinha, mesmo que fosse pequenina, e de todos só estávamos dispensados de diamante. (sorrindo) Mas eu arranjei um diamante. "Canibalizei" ou, melhor dizendo, destruí o gira-discos, tirei-lhe a agulha, que na altura as agulhas eram de diamante. Ou, pelo menos, eu pensava que eram. Então lá estava um diamante para entregar ao professor. Mas eu apaixonei-me pelos minerais porque as suas características eram muito distintas. Eu sou daltónico, mas consegui superar o daltonismo. Identificar minerais mesmo sem usar muita a questão da cor. E, estou bastante satisfeito por ter feito isso, porque a cor é um pouco engano. É um engano no seguinte sentido: sabem que há um mineral chamado celestite? Chama-se assim porque geralmente tem a cor azul-celeste. Mas eu tenho oito exemplares de celestite que não são azuis, são castanhos, amarelos e incolor.

8. Então, o que é que chamou a sua atenção, enquanto criança, se não via a cor?

Vamos lá ver, eu gosto de ver a cor. Agora, não me serve de muito identificar pela cor, porque eu chamo nomes diferentes. Aquilo que as pessoas chamam verde, para mim pode ser azul. Isso também importa para vocês os ditos "normais". (sorrindo) Também acontece, sobretudo entre as meninas - para os homens há as cores básicas do arco-íris – distinguirem 900 cores, incluindo o azul banana, que eu gostava de saber o que é o azul banana. É uma cor de cosméticos. Existem mais de 900 cores, reais, palpáveis, mas cores virtuais existem muitas mais.

9. Que idade teria quando teve esse professor?

Uns 13 ou 14 anos.

10. E já tinha noção da utilidade dos minerais?

Sim, porque estava nas coisas lá em casa. Nos livros por onde nós estudávamos já vinha a aplicação dos minerais, para que é que serviam. E descreviam os minerais metálicos como provindos dos minérios disto ou daquilo, uma vez que os não metálicos geralmente eram materiais de construção.

11. Especificava a esse ponto?

Sim, especificava. Eram um bocadinho descritivos.

"Na altura, havia dezenas de minas em exploração em Portugal, (...) escrevi dezenas e dezenas, cerca de uma centena de postais, alguns perderam-se, nunca chegaram ao seu destinatário" 

12. E onde é que foi encontrar os outros minerais que o professor pediu?

Isso também é um apontamento interessante. Na altura, havia dezenas de minas em exploração em Portugal. E eu escrevi para todas elas, todas as que vinham no livro, postais do correio. Eu escrevi dezenas e dezenas, cerca de uma centena de postais, alguns perderam-se, nunca chegaram ao seu destinatário. Porque dizia apenas "Minas de Arouca" e esse não é o destinatário postal correto. De maneira que esses perderam-se. Mas o das Minas da Panasqueira chegou e eles mandaram-me exemplares de volframite, de cassiterite, de calcopirite, etc. E alguns compravam-se. Íamos a casas que vendiam minerais para fins pedagógicos, como a Tecnodidática.

13. O que é que o levou a enviar todos esses postais? Houve alguém que o incentivou?

Como é que começou a história dos postais? Não vos sei dizer. Não sei, mas eu acho que sim, que foi uma ideia minha. (sorrindo) A necessidade faz aguçar o engenho.

14. E é interessante que muitos responderam, não é?

Muitos responderam. Eu ainda tenho alguns exemplares conservados com bastante carinho na minha coleçãozinha. Eu tenho uma coleçãozinha que atualmente tem 2000 e tal exemplares.

15. E alguns são desses?

Alguns desses, talvez uma dúzia os que transitaram da coleção infantil, por assim dizer, que é como está referida na minha base de dados. Coleção infantil. 

"Eu era uma espécie de mascote (...) do Grupo de Mineralogia e Geologia (...) e eu adorava ir ao campo, não perdi nenhuma oportunidade"

16. Portanto, nessa altura tínhamos um Fernando Barriga que estava muito interessado na mineralogia. O que é que o fez dar o passo seguinte?

Vim aqui visitar o Museu Nacional de História Natural [Lisboa], porque o meu pai ofereceu-me um livro. O meu pai era um bibliófilo inveterado. Comprava livros todos os dias, ou quase, para grande desespero da minha mãe, que não sabia onde é que havia de se por tanto livro. Além do custo, que também era significativo, porque eu sou de uma irmandade de oito. Sou o segundo mais velho. Tenho uma irmã mais velha. Mas um dos livros que ele comprou era o "Rochas e Minerais", numa tradução do francês. O tradutor tinha acrescentado no fim uma nota sobre os museus que se podiam visitar em Portugal, e um deles era o Museu Nacional de História Natural, na Rua da Escola Politécnica. E eu vim cá ter. Lá descobri o caminho, que eu morava no Restelo, ao pé da Algés, mas pus-me nas minhas tamanquinhas, nos elétricos e cá cheguei. Descobri que o museu estava fechado sempre, exceto às quintas-feiras à tarde, e era preciso tocar a campainha. Mas vim e fui acompanhado pelo senhor Joaquim Lopes, que era preparador e técnico, pai de um grande amigo meu hoje, o César Lopes, que me levou a passear pela coleção e eu ia vendo aquilo que queria. Mais tarde, quando já era aluno de Geologia, tive o privilégio de ver alguns desses exemplares na minha mão. Isto, antes do incêndio. Na minha mão, porquê? Porque tinha aulas com o professor Carlos Torre de Assunção, que na altura era o diretor do Museu. E ele, sabendo do nosso interesse pela mineralogia - havia dois fanáticos da mineralogia, eu e o atual professor José Munhá, que já está aposentado há uns anos, é a vida! – abriu-nos as portas das vitrinas e passou-nos alguns exemplares para a mão. Foi um privilégio. E outra coisa que me aconteceu foi eu tornar-me uma espécie de mascote do Grupo de Mineralogia e Geologia. Era uma espécie de mascote e eu adorava ir ao campo, não perdi nenhuma oportunidade de ir ao campo. Se havia lugar na viatura, eu ia. Fui inclusivamente a excursões de finalistas. Uma vez fui ao campo no jipe do museu, com o senhor Joaquim, que era o coletor condutor, com o professor Carlos Teixeira e com o professor Francisco Gonçalves. E aqui o Je.

17. Então, mas nessa altura teria uns 15 ou 16 anos, ainda não estava na universidade, pois não?

Não, ainda não estava na universidade. Foi qualquer coisa. Aconteceu, porque eu andava muito por aqui, já conhecia uma data de alunos que estudavam Geologia, estudantes de licenciatura, e eu pendurava-me naqueles grupos e eles já me conheciam das excursões.

18. E lembra-se onde foram, nessa primeira saída que foi com o professor Carlos Teixeira?

Essa foi menos interessante porque era para fazer uns detalhes da cartografia na península de Setúbal.

19. Deve ter sido incrível, com 16 anos estar ali com aqueles geólogos.

(sorrindo) Foi, inchado que nem um peru!

20. Qual é que foi a reação da sua família quando lhes disse que queria estudar Geologia?

Foi moderada, mas o meu pai queria que eu fosse para direito como ele. Ficou um pouco desapontado. Dizia "Tu tens imenso jeito, falas bem e escreves bem, devias ir para direito". E eu disse "Mas eu não quero ir para direito". E ele acabou por se calar. Quer dizer, ele disse a opinião dele, mas deixou que a minha opinião prevalecesse, a vida era minha.

21. Ele conhecia as saídas profissionais, sabia o que era?

Alguma coisa. Mas, na altura, os melhores alunos, modéstia à parte, tinham a possibilidade de ficar como assistentes estagiários, ficar logo na universidade. Entrava-se por convite dos professores, porque entrar para o corpo docente, em muitos casos, era uma coisa um pouco transitória, noutros casos era definitiva, como foi o meu caso e o do José Munhá, entre outos. Na altura, havia empregos ou nas universidades ou nas colónias. E quem conseguisse ficar na universidade, se era isso que se pretendia, era preciso trabalhar para isso, tirar boas notas.

"Uma vez desafiei o Professor Galopim de Carvalho, meu professor de sedimentologia, que estava a dar a aula prática". 

22. Que geólogos, que estejam/tenham estado no ativo na profissão, foram seus colegas de curso?

O José Manuel Munhá, que tem cinco dias de diferença de mim e entrámos no mesmo ano. Também o Costa Almeida, que entrou e fez muitas cadeiras ao mesmo tempo que eu. Ele era trabalhador-estudante, fazia o curso com um plano de estudos diferente do normal. Tive outros dois colegas: um foi para consultor do Banco Mundial, o Tolda, já há muitos anos que perdi o contacto com ele; e o outro, o Carmona, foi para a chamada "vida prática", foi trabalhar como geólogo em geotecnia.

23. Como aluno universitário, foi um aluno médio, bom ou muito bom?

Licenciei-me com média de 16 e tive notas superiores a 17 a todas as disciplinas da secção, ou seja, a todas as disciplinas de Geologia. O que significa que tive notas um pouco mais baixas nas matemáticas, nas físicas... aquelas coisas.

24. Portanto, em termos de notas, era muito bom aluno, mas, se calhar, por ser a mascote, era também um aluno muito interessado, muito participativo?!

Era. Ninguém me calava. Uma vez desafiei o professor Galopim de Carvalho, meu professor de sedimentologia, que estava a dar a aula prática. Sedimentologia era uma cadeira nova. Às tantas, estávamos a identificar uma rocha sedimentar, jaspe. Dizia ele que era um jaspe... mas não era vermelho. Lá estava a cor!. E eu corrigi o professor Galopim de Carvalho em plena aula: "Senhor professor, eu acho que os jaspes têm de ser vermelhos". A resposta dele foi "Vocês hoje são muito insolentes. Mas não se preocupe porque isto fica já aqui, vou já esquecer esta conversa. Não, não lhe vou pegar de ponta nem coisa nenhuma, não me vou zangar consigo." Mas, realmente, o professor Galopim já era professor extraordinário ou talvez até catedrático. Ainda por cima a 'correção' do miúdo estava errada: embora a cor característica dos jaspes seja vermelha, podem ter outras.

25. Essa energia extravasou para outro tipo de atividades académicas? Era muito focado só na parte científica e da Geologia ou envolvia-se, por exemplo, na associação de estudantes?

Fui colaborador da Associação de Estudantes na cabine sonora. Era eu quem dava música aos bailes da associação. E fazia o noticiário, que era muito importante, porque isto foi antes do 25 de Abril e o noticiário tinha imensas notícias proibidas.

26. Então estava a colocar também a sua própria carreira em risco, podia vir a ter uma visita…

Podia, mas já nessa altura devia ser considerado inofensivo. Não sei se cheguei a ter ficha na PIDE, mas tive alguma atividade anticolonial também. Colaborei um pouco na distribuição dos cadernos GEDOC, que eram uma publicação em Stencil, com notícias da guerra colonial. Ou seja, sim, interessava-me por outras coisas além do mundo académico.

27. Lembra-se da primeira superfície polida que viu ou uma especial em particular?

Trouxe uma coisa para vos mostrar. [ver rubrica Intraclasto, abaixo]

"(...) enquanto com o professor Ricardo Quadrado, pelo contrário, ficámos grandes amigos. Tratava-o por tu"

28. Qual foi a disciplina que mais gostou durante o curso e quem é que a lecionou?

A que eu mais gostei foi a cristalografia e mineralogia lecionada pelo professor Torre de Assunção e pelo professor Ricardo Quadrado, que na altura era assistente. O professor Torre de Assunção era muito mais velho, era uma pessoa muito formal, embora fosse uma excelente pessoa e de quem eu tenho as melhores recordações. Mas não deu para estabelecer uma relação mais próxima com ele, enquanto com o professor Ricardo Quadrado, pelo contrário, ficámos grandes amigos. Tratava-o por tu, embora ele também fosse bastante mais velho do que eu. Hoje teria 96 anos se fosse vivo. Foi uma amizade para a vida. Eu, de resto, sempre me dei bem com as pessoas mais velhas que eu e que me rodeavam. E mais novas também.

29. Se tivesse de escolher uma georreferência, quem seria?

O Bill Fyfe. Conheci-o através do José Munhá, que ele é que escolheu a Universidade de Western Ontario para se doutorar. E depois desafiou-me a ir também, porque estava lá o professor [Richard W.] Hutchinson, que me poderia orientar no doutoramento sobre Aljustrel. Fui para a Western Ontario, mas acabei muito rapidamente por não ter nenhum contacto com o professor Hutchinson para ser ele o meu supervisor principal. Fez parte da minha equipa de supervisão, mas o meu orientador foi imediatamente o Bill Fyfe, com quem estabeleci uma relação de amizade. Como a do Ricardo Quadrado ou mais íntimo ainda. Ele era uns 20 anos mais velho que eu. Havia várias coisas que justificavam essa amizade, havia afinidades intelectuais, havia maneiras de reagir perante as coisas. Havia amizade familiar.

" O que me interessou sempre mais foi descobrir as histórias que os minerais contam (...) são muito bonitos (...) mas isso não tem comparação possível com o descobrir como se formam"

30. Quando passou pelo Canadá, a sua família foi consigo?

Foi. Na altura, quando fui fazer doutoramento, já era casado.

31. Com que idade se casou?

Com 20 anos. Com 20 ou 19 anos. Fomos para o Canadá jácom dois filhos. O Bill e a Pat [mulher do Bill] iam com alguma frequência jantar a nossa casa e nós a casa deles. Umas vezes com e outras sem as crianças.

32. Sentiu que se estabeleceu uma relação de amizade e admiração mútuas?

(anuindo) Sim, modéstia à parte.

33. Ele é um nome grande da geoquímica. Depois daquela saída de campo com o Carlos Teixeira e com o Francisco Gonçalves… de nome grande em nome grande.

Ah, sim. As saídas de campo com o Bill foram mais que muitas e em circunstâncias bastante mais complicadas, porque estava no Canadá, mas para ir a vários sítios. Fomos ao Chipre, por exemplo, a partir do Canadá. Ele lá arranjava uns dinheiros para pagar.

34. Naquilo que foi sua vida profissional, qual foi a atividade ou exercício que mais prazer lhe deu?

Não tenho algo concreto. O que me interessou sempre mais foi descobrir as histórias que os minerais contam. Uma coisa é olhar para os minerais, de um ponto de vista descritivo, são muito bonitos, podem pôr-se numa vitrine... atenção! Eu também gosto disso. Mas isso não tem comparação possível com o descobrir como é que se formam, como é que aquela stichtite substituiu a magnesiocromite.

35. Portanto, a parte de fazer investigação…

Ir ao fundo do mar, por exemplo. Ver em primeira mão como é que se processa o crescimento de uma chaminé hidrotermal. É fantástico. É um privilégio que pouca gente tem.

36. E que tipo de investigador é? Por exemplo: há um desafio que não sabe explicar. Começa a estudar e descobre o porquê. A seguir, tem tendência a largar aquele e a procurar o próximo desafio?

(anuindo com a cabeça) É um dos meus maiores defeitos. Tenho de me disciplinar muito para levar as coisas até ao paperwork.

37. Sabemos que a vida profissional não é só rosas. Por certo que também teve de fazer coisas que não lhe davam tanto gozo…

(sorrindo) Ver pontos. Odeio ver pontos. São ossos do ofício. Eu tentei resolver o assunto com perguntas de resposta múltipla. Melhorava um bocadinho, mas também dava muito trabalho a fazer. Começaram por ser respostas com algumas linhas, quatro alternativas, duas delas completamente absurdas, uma correta e uma próxima do correto. Dá muito trabalho fazer esse tipo de exame. Mas facilitava a correção. Uma vez tive um aluno que conseguiu tirar uma nota negativa no exame, porque nas respostas absurdas, uma delas tinha uma cotação negativa [abaixo de zero], para evitar que as pessoas respondessem à toa. De maneira que acabei por mudar um bocadinho o esquema. Eu cheguei a ter 240 alunos a mineralogia. Dava aulas no anfiteatro do edifício C3, na FCUL [Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa], que teria uma capacidade de base para cerca de 300 pessoas. Isto aconteceu devido a uma reestruturação do curso, em que se acumularam dois anos e depois durou algum tempo a regularizar.

38. Qual é a sua publicação favorita?

(segurando uma revista) Trouxe uma coisa que é de uma imodéstia total. Isto é a "Única", revista do Expresso, que tem algumas referências a meu respeito. É uma publicação que me toca muito. [imagem abaixo]

Trechos da Revista Única do Expresso de 23 de Outubro de 2010, com a peça "A última fronteira", onde destacam "Fernando, o Explorador".

39. Será mesmo a palavra que melhor se ajusta. Foi, portanto, considerado um dos "Senhores dos Oceanos"!

Um dos oito. Não acha que tenho razão para estar orgulhoso? (sorrindo) Se calhar não sabem, mas na altura, chamavam-me também o Indiana Jones português.

40. Mas o que gosta é de se colocar no submarino ir lá abaixo, não é? E tudo isto nesta casa, onde de certa forma tudo começou.

Nunca deixei de ter contacto com esta casa.

41. Se dissessem ao miúdo de 15 anos, que veio aqui tocar à campainha à quinta-feira, que viria a ser diretor...

É verdade, pode crer.

" O meu envolvimento com o IODP foi bastante grande, porque depois dessa missão e durante muito tempo, fui representante de Portugal no ECORD "

42. Qual foi o momento mais marcante na sua carreira?

Das coisas mais espantosas que eu já fiz foram os mergulhos nos submersíveis. Ainda por cima foi um privilégio, porque hoje muito raramente alguém vai, já não se usam tanto os submarinos tripulados. Mandam-se os ROVs. Mas outra coisa que posso acrescentar, são as sondagens suboceânicas. Eu fui chefe a meias da missão IODP da Papua-Nova Guiné para testar, em parte, ideias minhas. O meu envolvimento com o IODP foi bastante grande, porque depois dessa missão, e durante muito tempo, fui representante de Portugal no ECORD. Por via dessa representação, participei no International Working Group Plus, que era uma estrutura que definiu a fase do IODP que ia começar. Isto porque aquilo de 10 em 10 anos sofre uma reestruturação e eu participei numa delas. Inicialmente era DSDP, depois passou para ODP e depois para IODP. E eu estive nesta última transição.

43. Conseguiu trazer essas oportunidades com o IODP para o GeoFCUL?

Eu acho que sim.

44. Tem assim algum momento mais embaraçoso, mais complicado, um falhanço que se recorda?

Como é que era possível que um geólogo e, sobretudo, um mineralogista, fosse daltónico? Porque muita gente classifica os minerais pela cor. Como há pouco dizia, a celestite para a maioria das pessoas tem de ser azul. Mas não. E perguntou-me há pouco como é que eu faço, sem recorrer à cor. É simples. Tem a clivagem, tem a forma, tem o hábito, tem a dureza, tem a densidade, tem uma série de propriedades que permitem chegar à identificação daquele mineral, ou pelo menos ir para um determinado grupo. Aquilo que vocês, os "autointitulados normais", (sorrindo) chamam verde, para mim não é verde coisíssima nenhuma. E isso não me perturba, mas já me conduziu a algumas situações embaraçosas, conforme vocês imaginam. E as minhas colegas deliciavam-se a fazer perguntas, tudo e mais alguma coisa: "E este mineral, é de que cor?"

45. Quando era estudante de mineralogia, por vezes tinha que justificar a classificação de um mineral e, quanto à cor, aprendeu que a cor que estava a ver seria equivalente a uma das cores que nós, " os normais", vemos?

(sorrindo) Também me aconteceu. Ou então chamava o professor que estava a vigiar o exame e perguntava que cor é que era aquele mineral.

46. Hobbies, tem? Atividades que tenha hoje em dia ou que teve?

Fotografia. Mas eu tenho numerosos hobbies, como bricolagens, por exemplo. Agora está um bocadinho mais sem graça... Gosto imenso de cinema. Gosto dos clássicos, de [Francis Ford] Coppola, gosto muito do filme "A Lista de Schindler" [1993], é um protótipo de um filme que gosto. É uma coisa que me agrada, que me enche as medidas. Gosto do cinema espetáculo com conteúdo. Mas também gosto do "Gladiador" [2000]. É um filme espetacular. Tem conteúdo, também tem relações entre as pessoas. Agora gosto pouco de filmes com muito diálogo, muita parra e pouca uva. (sorrindo) Não é o meu forte.

"Das coisas mais espantosas que eu já fiz foram os mergulhos nos submersíveis"

47. Para terminar, se não tem tombado sobre essas coleções de minerais e decidido visitar o museu e vir para Geologia, o seu pai teria ganho a luta e teria ido para direito?

Se fosse hoje, talvez. Mas na altura não! Teria ido para química. Eu comecei a interessar-me pela geoquímica, começando pela química. Ganhei uma caixa de química, daquelas para os miúdos, quando tinha para aí 12 anos. Fiz as experiências todas da caixa.

48. Recorda-se quem deu a caixa?

Foi uma pessoa da família.

49. Já sabiam que era uma pessoa muito curiosa, que tinha apanhado um choque elétrico, e a família pensou que lhe faltava uma caixa de química… (tom trocista)

(sorrindo) É verdade, leu [outra entrevista] sobre os circuitos elétricos! Tinha também o rádio, pobre rádio. Os rádios eram válvulas em vez de transístores, eram uns dispositivos com uma caixa de vidro. (gesticulando) Eram assim deste tamanho [pequeno], tipo cilíndricos, quase todos. Depois encaixavam numa placa de circuito, aquilo que seria hoje uma placa de circuitos impressos.

50. Desmontava-os?

Desmontava-os e retirava as válvulas e ia aos manuais de válvulas ver substituições. Arranjei o rádio várias vezes. (tom brincalhão) Arranjei, não destruí. Um dia aconteceu-me uma cena, um rádio avariou e eu não era capaz de o arranjar. Então chamou-se um técnico, um tipo que vinha à noite, por conta própria, fazer o arranjo. E, então, ele disse "É esta válvula" e eu, que estava a assistir à conversa, fui a correr ao meu quarto, vim para baixo com o manual de válvulas que tinha o preço. (sorrindo) E então o coitado do técnico já não pôde pôr o mesmo preço que ia pôr. Teve de fazer um preço muito mais baixo do que aquilo que queria. Depois resolveu apenas cobrar o valor da válvula, não cobrou o valor da deslocação nem do trabalho dele. E aqui está uma coisa que ainda hoje me incomoda… só ter cobrado o valor da válvula. 


Intraclasto

Serpentinito com stichtite

O Fernando quis partilhar connosco esta incrível superfície polida de um serpentinito, em que a magnesiocromite está a ser alterada para stichtite, o mineral que se vê como roxo na foto. Esta é uma das questões que o Fernando ainda almeja resolver. De uma forma, ou de outra, lá anda o CO2 a dar cabo de tudo... 

"Isto é uma placa polida de uma rocha super exótica, um serpentinito, que eu imagino que seja verde. E depois tem um mineral roxo e umas pintinhas pretas, que são magnesiocromite. O mineral roxo, ao qual eu tirei uma microfotografia para vos mostrar melhor, é um mineral que dá pelo nome de stichtite, um carbonato hidratado de crómio e magnésio. Isto inspirou-me imensa curiosidade, porque ele está a corroer, a substituir, a cromite. E a cromite é um mineral resistente, que encontramos na areia da praia, resiste muito à erosão. E como é que um carbonato consegue substituir a magnesiocromite? Esta ainda me está cá atravessada. Ainda tenciono estudar isto um dia como deve ser, fazer lâminas delgadas a sério, lâminas delgadas polidas e meter-me na microssonda. Mas é muito interessante, porque vê-se ao longo das fraturas de cromite que há uma evasão desse mineral roxo. Será por ser muito mais redutor? Ainda por cima a stichtite é posterior à serpentina."


Geomanias

Rocha preferida? Serpentinito

Mineral preferido? Calcopirite

Fóssil preferido? Algas cianofíceas

Era, Período, Época ou Idade preferido? Arcaico

Trabalho de campo ou de gabinete? Um sem o outro, não faz sentido. Para mim, para aquilo que me interessa, é difícil fazer só campo

Martelo ou microscópio? Microscópio

Pedra Mole ou pedra dura? Dura

Amostra de mão ou lâmina delgada? Tem de ser amostra de mão, que é a que nos leva a resolver, posteriormente, as questões

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos

Lusitânica ou Lusitaniana? Lusitaniana


Teaser da Entrevista