Carlos Rosa
Abril 2025
GEOLOGIA MINEIRA
SÓCIO APG Nº O1329
Mais conhecido por Cazé, este outrora menino de Caneças queria trabalhar fora de paredes. Conseguiu! Foi para a Tasmânia para entender as rochas vulcânicas félsicas e já andou a tratar da saúde de minas antigas. Hoje continua a fazer o que mais prazer lhe dá: prospetar recursos minerais metálicos na incomparável Faixa Piritosa Ibérica.
" (...) Depois tivemos uma grande indústria de lapidação [DIALAP, Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes], nos locais onde hoje é a Rádio Televisão Portuguesa [RTP; Cabo Ruivo] e onde foi a sede da Parque Expo '98. E hoje, o que somos nos diamantes? Nada, não somos absolutamente nada. Podíamos ser um país fantástico!"
Abril de águas mil traz-nos Bernardo Reis, também conhecido como o "diamante bracarense", que dispensa títulos e prefixos apesar de uma vida profissional riquíssima e de grande notoriedade. O Bernardo personifica o verbo fazer, dá a sensação que teve três vidas e, em todas elas, produziu o suficiente para uma vida individual cheia. Nasceu no Pico de Regalados, provavelmente de propósito, para hoje poder brincar com o facto de, para si, a vida ser um regalo. Encarou desde sempre a vida com espírito crítico, tendo-se envolvido já como estudante, na Universidade de Coimbra, em várias causas. Foi um dos quatro primeiros hidrogeólogos portugueses, mas a paixão platónica por África levou-o para a Companhia de Diamantes de Angola onde fez história. Correu a África diamantífera, passou pela América do Sul, do Norte, Austrália, até decidir decantar como intraclasto em Braga e fazer de conta que não existe reforma. Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Braga há mais de vinte anos, soma feitos de ação social que lhe valeram a distinção como comendador. Um privilégio ouvir esta história na primeira pessoa, no Palácio do Raio, restaurado na onda de feitos sociais do Bernardo, e onde continua diariamente a arriscar, porque como o próprio diz "quem não corre riscos, não faz nada"!
Entrevista
Palácio do Raio - Santa Casa da Misericórdia de Braga, julho de 2023
1. Nome, data e local de nascimento?
O meu nome é Bernardo José Ferreira Reis, embora eu prefira e seja conhecido a nível das minhas publicações, e não só, mesmo aqui no Palácio [do Raio] e por todos os sítios onde passei, pelo nome de Bernardo Reis. Nasci em 1934, portanto, neste momento tenho 89 anos feitos. Nasci na Freguesia de Pico de Regalados, nasci numa freguesia regalada! (risos) É no concelho de Vila Verde, distrito de Braga. Foi aí o início da minha vida, e eu, como aquilo eram campos e montes, comecei a mostrar uma certa apetência para fazer visitas aos montes e às rochas, a tudo isso que me deu, talvez, uma certa tendência inicial para a Geologia.
2. Conte-nos o que andou a fazer profissionalmente antes da sua dedicação atual.
Profissionalmente tive uma vida muito cheia, muito completa. O meu pai era comerciante ao mesmo tempo que se dedicava também muito à agricultura e eu dediquei-me bastante à agricultura, pois tinha uma propriedade e, realmente, gostava imenso. Numa altura em que já tinha vindo de Angola, já tinha cinquenta e tal anos, dediquei-me à produção de pêssegos, dediquei-me à produção de maçãs e também tinha uma vacaria, para a produção de leite. Gostei imenso, talvez devido às minhas origens, vindo de uma aldeia e, por outro lado, também por aquilo que o meu pai me ensinou. Como sabe, no passado, muitas vezes, havia muitos irmãos e nós éramos nove. Tínhamos que, enfim, encontrar soluções para perseguimos a nossa atividade e todos termos uma certa formação. Mas numa primeira fase, dediquei-me à formação académica, incluindo várias outras atividades, principalmente extracurriculares, na Universidade de Coimbra. Fui também o segundo eurogeólogo português. O primeiro foi o Martins Carvalho. Também estive na Associação Portuguesa de Geólogos! A APG começou, de certa forma, em Angola, numa altura em que eu era apenas sócio. Mas foi aí que começou. E quando viemos para Portugal, houve um grande crescimento da associação e eu então aderi a esse movimento, muito através do Martins Carvalho, que foi uma referência, e fiquei fortemente ligado à APG, onde depois vim a desempenhar as funções de presidente da Comissão Diretiva, da Assembleia Geral e do Conselho Fiscal em vários períodos desde 1981 até 2006. Dei um grande impulso à revista Geonovas, criei também o Boletim dos Geólogos e fizemos imensos congressos por todo o país. Também lançámos um curso para dar créditos aos professores e percorremos quase todo o país para fazer ações de formação na área da Geologia. E, desde a Universidade de Évora à Universidade do Porto, tive e tenho grandes amigos, e fiquei a conhecer realmente muitos professores em diversas instituições. Nessa fase, eu estava em Lisboa, a sede da APG era [e é] na rua da Academia das Ciências, onde eu aproveitava para trabalhar à noite, já que a minha mulher estava aqui em Braga. (sorriso)
"E foi aí o início da minha vida, e eu, como aquilo eram campos e montes, comecei a mostrar uma certa apetência para fazer visitas aos montes e às rochas"
Bernardo Reis
vestido de São Bernardo,
na festa de Nossa Senhora
da Assunção em 1937 (esquerda) e na casa dos avós,
no Pico de Regalados, com as irmãs
e irmãos, em 1953 (direita). Imagens retiradas de Lobo de Araújo & Esteves (2018).
3. A Geonovas vive necessariamente do contributo dos profissionais, os geólogos que publicam nela. Na altura, o que o motivava?
Eu acho que as publicações são fundamentais. Primeiro, dão a conhecer o conteúdo daquilo que se faz. Depois, são uma maneira apelativa para as pessoas entrarem para determinadas áreas das ciências geológicas. E a revista Geonovas era uma revista de referência, as pessoas liam as Geonovas, liam os artigos, motivava-se a comunidade geológica para dar a conhecer aquilo que cada um fazia. Hoje há geólogos de referência, quer a nível universitário, quer a nível profissional, e é pena que não sejam transmitidos esses conhecimentos em suportes acessíveis, até para motivar os jovens. Por exemplo, aqui na Universidade do Minho, havia um departamento de Geologia que praticamente desapareceu, o que é de lamentar. Recordo a Graciete [Tavares Dias], uma grande amiga minha, grande impulsionadora desse departamento, e o [José Eduardo] Lopes Nunes, que foi também um dos primeiros hidrogeólogos por cá e um grande nome da área na Universidade do Minho. Na altura era importante motivar as pessoas a irem para Geologia e essas publicações foram fundamentais. Eu felicito-vos por darem alma à Geologia e transmitirem aos jovens que a Geologia também tem futuro e que sem ela, não o há. Olhem para os recursos naturais que são fundamentais para a nossa sobrevivência. Fala-se agora da exploração submarina, não é verdade? Qual o caminho que vamos seguir, como vai ser feito? Porque realmente é fundamental, antes de partirmos para a exploração submarina, sabermos o que é que isso vai implicar. Por exemplo, a contestação que está aqui a haver na zona de Montalegre em relação ao lítio. Não querem dar seguimento à exploração de lítio, mesmo que seja hoje essencial para determinadas tecnologias. Boticas já conseguiu evitar que a exploração fosse feita. É preciso analisar e congregar tudo, o ambiente, a vivência das pessoas e o que é que pode causar e gerar, as mais-valias e menos-valias. Mas também não é só a exploração, não basta explorar e enviar para o exterior, é preciso ficar em Portugal [toda a cadeia de valor]. Por outro lado, saber como é que se podem contornar os problemas que isso possa causar ao ambiente, como os resolver. E manter a paisagem, por exemplo, sem fazer grandes buracos e com um programa de reflorestação. Porque a paisagem também é importante e fundamental.
"Tive uma vida muito afortunada (...), uma vida muito cheia. Há pessoas que não esqueço, professores que me deram muito ânimo para percorrer esta vida"
4. E como geólogo, quais foram as áreas em que desenvolveu atividade?
Como geólogo, primeiro tive o privilégio de conhecer e trabalhar – eu cheguei a Coimbra em 1952 – com o professor Cotelo Neiva, um grande geólogo e um grande amigo, toda a minha vida. Aliás, chegou a propor-me para académico, o que foi recusado porque, na altura, eu não era doutorado. Mas trabalhei com o professor Cotelo Neiva durante os quatro anos que estive em Coimbra e com ele percebi que tinha uma certa apetência para a Geologia de campo. Isso conduziu-me a áreas como a hidrogeologia e a geofísica, por exemplo. Quando me graduei, o professor Cotelo Neiva convidou-me para seu assistente, mas nessa altura o salário era de 1300 escudos, e, confesso, achei que era pouco. Por essa altura, constituíram-se os primeiros quatro hidrogeólogos portugueses: eu, o Lopes Nunes, que foi vice-reitor da Universidade do Minho, o Jaime Martins Ferreira e o Rui Alves. Estávamos no Ministério da Urbanização e Saneamento, em Lisboa, onde fizemos um estágio, e percorremos diversos pontos do país. Ah! E até houve uma peripécia interessante. Nessa altura, havia um problema de abastecimento de água a Fátima e o Salazar transmitiu a necessidade de resolver o problema ao Ministério das Obras Publicas. Nós fomos então para a Serra de Aire e Candeeiros e para as zonas vizinhas de Fátima e consta que ele [Salazar] disse: "Se eles não resolverem, eu recorro ao professor Abel Guerra" - dos Jesuítas em Santo Tirso - "que ele vai lá com 'a varinha', com a radiestesia, e imediatamente descobre a água!" (risos) E nós os quatro, o que fizemos? Começámos a percorrer a serra, a ver as grandes grutas, os poços, porque são regiões calcárias, fizemos os levantamentos e chegámos aos rios de circulação subterrânea. Fizemos o levantamento e com uma só sondagem ficou resolvido o problema do abastecimento de água a Fátima! Gostei imenso. Depois, entre 1958 e 1960, prestei assistência a todas as câmaras a norte do Douro, como hidrogeólogo, a resolver muitos problemas nessas regiões. Depois dediquei-me muito à geofísica, área na qual fiz uma especialização na Universidade de Cambridge, em Inglaterra, em 1963. Também fiz uma especialização, e era um grande especialista, na área da magnetometria, particularmente nos levantamentos aeromagnetométricos no nordeste de Angola. Porquê? Porque me permitiam encontrar estruturas e os kimberlitos. E fizemos os levantamentos aeromagnetométricos de grande parte de Angola que contribuíram grandemente para descobrir muitos jazigos de diamantes. Dediquei-me também à pesquisa destes minerais através de geoquímica do crómio. Colhíamos as terras e os solos, depois fazíamos as análises e, se encontrássemos crómio, era uma indicação de que possivelmente poderia haver um kimberlito, uma "rocha-mãe" do diamante. Embora ela não seja bem a rocha-mãe, mas é ela que transporta o diamante e também a granada e o cromo-diópsido, vindos de grandes profundidades. Este último, como é rico em crómio, depois de alterado, "espalhava" o crómio em redor. E esta metodologia foi um grande avanço, trabalhos desenvolvidos em grande profundidade em Angola, que nos permitiram ganhar grande experiência e encontrar determinados jazigos. Começámos pela pesquisa dos jazigos aluvionares, junto aos rios, fazendo poços, lavando o cascalho e, depois, concentrando os minerais mais pesados, onde estava precisamente a granada, a ilmenite, o cromo-diópsido e o diamante. Havia diversos tipos de prospeção, a prospeção geral e a prospeção de desenvolvimento: a primeira dava-nos uma ideia e a segunda, efetuada quando encontrávamos minerais que nos dessem indicações. Já agora, o porquê do nome kimberlito? Porque foi descoberto pela primeira vez em Kimberley, na África do Sul. É uma rocha essencialmente constituída por silicatos de diversas origens, mas mais especificamente silicatos ligados ao crómio. Por isso, encontrar o cromo-diópsido era tão importante! O máximo que ele podia percorrer eram uns 15 a 30 quilómetros a partir da fonte. Se encontrávamos o mineral, íamos continuando, quer na via dos rios, nos aluviões, quer então noutras áreas, e isso conduzia-nos à descoberta do kimberlito, que normalmente tinha a forma de um cogumelo. Portanto, orientei um grande número de levantamentos aéreos em Angola, com aviões destinados para esse fim, para fazermos a aeromagnetometria, definirmos as grandes estruturas e delimitarmos as áreas de prospeção. Tínhamos toda a área de Angola exceto o litoral, que não era nosso [da Companhia dos Diamantes de Angola]. Tivemos que selecionar até 1974, 50 000 km2 de claims. E cada claim eram 2500 km2. Então selecionámos em todo o país as áreas principais dos claims, num total de 20. Depois, foi nestas áreas que se efetuaram as pesquisas dos diamantes, quer os diamantes aluvionares, quer os das rochas do Cretácico médio, o conglomerado da Formação Calonga, resultante da erosão dos kimberlitos. Geralmente aflorava no pontos mais altos e, por isso, era também ele que originava os diamantes aluvionares. E, claro, alcançámos também os kimberlitos. Estes trabalhos deram-me grande experiência e por isso vim a desempenhar a função de chefe de secção de Geologia e chefe dos Serviços de Prospeção e Geologia, nos quais tínhamos 15 geólogos. Tive o prazer de trabalhar com o Fernando [Nunes Ferreira] Real e outros grandes geólogos.
Prospeção nos rios Chiumbe e Luachimo (1967) e sondagem no kimberlito de Camútaré (1963), em Angola. Imagens retiradas de Lobo de Araújo & Esteves (2018).
5. Qual era a companhia que estava a representar quando esteve em Angola?
Era a Companhia de Diamantes de Angola. Tinha uma área de concessão de 50 000 km2 e era uma companhia de referência a nível mundial, principalmente na área social. Tinha até o segundo maior museu de África [museu do Dundo], ligado ao povo dos Lundas e não só. Dedicava-se muito à investigação e há imensas revistas que foram publicadas. Nesse sentido, eu, como geólogo, colaborei muito com um grande biólogo, o António Ramos Machado, que me pedia para ir recolhendo pequenos bichinhos e insetos pelas diversas partes de Angola por onde passava. E assim fiz. Uma espécie de inseto, por sinal, era inédita e foi-lhe dada o meu nome pelo subdiretor do Museu de História Natural de Paris [A. Badonnel], que foi quem a reconheceu. Só existia [a família Sphaeropsocidae] na Tasmânia, e eu encontrei um representante em Angola e ele chamou-lhe Sphaeropsocopsis reisi. Tive uma vida muito afortunada, nunca tive problemas com ninguém nos locais onde estive, uma vida riquíssima na selva, a viver com os habitantes locais, a alimentar-me do que eles comiam, porque, muitas vezes, não tinha outra solução.
6. Como é que passou da prospeção de águas para os diamantes?
Eu explico! O meu sonho sempre foi ir para África, tive sempre uma atração por África. E eu sou uma pessoa muito dada a fazer. Em todos os campos. Nessa altura, e também porque entendia que ia ter melhores condições de vida, resolvi ir para a área dos diamantes. Fui convidado em 1960 para ir para Angola, onde estive até 1977, deixando o lugar de hidrogeólogo. Lá não podíamos começar logo como geólogos, não aceitavam, então eu comecei como prospetor. Depois é que subíamos para geólogo. E só mais tarde passei para chefe de Geologia e chefe dos Serviços de Prospeção. Houve um período em que estive nos Serviços de Apoio Geral, passei para a área da gestão mineira, e terminei em 1977 como Diretor Geral e último Administrador Residente da Companhia de Diamantes de Angola, quando fomos corridos pelos ingleses. Tínhamos ordem do Governo português para, se não chegássemos a acordo, abandonar a Companhia de Diamantes de Angola. E assim o fiz no dia 3 de Dezembro de 1977.
7. Quando começou como prospetor, quem eram os seus chefes?
Nessa altura, o doutor Albertino Monforte, que foi um grande geólogo e que já faleceu. Não só foi um grande homem, com quem tive o privilégio de trabalhar, mas também um grande amigo. Como outros, aliás, trabalhei com muitos geólogos...
Na floresta de Mayombe (Gabão) em 1979. Da esquerda para a direita, Bertucat, Bernardo Reis e Eurico Pereira.
8. Eram todos Portugueses, nessa tal equipa de 15 geólogos?
Sim, eram todos portugueses. Mesmo depois de voltar para Portugal, para trabalhar noutros sítios, com grandes amigos de cá. Por exemplo, tive o privilégio de me cruzar com o doutor Eurico Pereira, que já tinha conhecido em Angola, quando voltámos ambos a Portugal e tornámo-nos grandes amigos. Eu, quando regressei, vim para uma empresa que era a Sociedade Portuguesa de Empreendimentos, em Lisboa, na qual estive enquadrado entre 1977 e 1999. E, nessa altura, a pedido do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que entendeu que devíamos continuar a dar apoio a vários países na área diamantífera, fui com o doutor Eurico Pereira para o Gabão. E o que é que aconteceu? Nós conseguimos dar a volta à Geologia estabelecida para o país pelos geólogos franceses do BRGM. Encontraram um conglomerado e insistiam que era fluvio-glaciar, mas nós chegámos e dissemos "Vamos lá lavar estes conglomerados, para ver se eles têm alguns minerais que nos digam alguma coisa". E verificámos que tinham granadas cromíferas e ilmenite. A partir daí "mudámos" a Geologia do Gabão, porque eram precisamente conglomerados do Cretácico médio, como o conglomerado Calonda de Angola. Temos uma publicação, eu e o doutor Eurico, sobre este trabalho. Depois, quando voltei novamente a Angola, entre 1990-1992, tive também a felicidade de trabalhar com o engenheiro [Fernando Manuel Barbosa] Faria de Oliveira, quando era o presidente do IPE [Investimentos e Participações Empresariais, S.A.]. E foi um privilégio esse regresso. Os ingleses, entretanto, tinham abandonado. Tinham decidido explorar um só depósito e depois foram-se embora. E nós, que conhecíamos bem o terreno, fomos chamados ao trabalho. Nessa altura foi novamente trabalhar comigo o doutor Eurico Pereira e também um jovem fantástico, que ainda hoje não esqueço e que é uma referência da Geologia em Portugal e tem feito um trabalho notável, o José Feliciano Rodrigues. Acabou agora um trabalho de cartografia do sul de Angola formidável! É um grande amigo e tive o prazer de trabalhar com ele. Depois fomos corridos, em agosto, porque resolveram pôr lá um político que deu cabo de tudo. Nós [portugueses] fomos grandes nos diamantes! Com o Vasco da Gama, em 1498, os diamantes que iam para Veneza passaram a vir para Lisboa. Mais tarde, no tempo do D. João V e do Marquês de Pombal, os diamantes do Brasil passaram a vir para Lisboa. Já no século XX, foram descobertos diamantes em Angola, em 1917, pela Companhia de Diamantes de Angola, que passaram a vir para Lisboa. Depois tivemos uma grande indústria de lapidação [DIALAP, Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes], nos locais onde hoje é a Rádio Televisão Portuguesa [RTP; Cabo Ruivo] e onde foi a sede da Parque Expo '98. E hoje, o que somos nos diamantes? Nada, não somos absolutamente nada. Podíamos ser um país fantástico! Também tive o privilégio, ainda nesse período em que estive em Lisboa, de trabalhar com outro geólogo que ainda hoje é um grande amigo, o Rui Baptista e com o doutor Albertino Monforte, na área mineira. Ia às minas de Arouca, aos jazigos de Rio de Frades, Montesinho, Vale de Gatas e também diversas minas ligadas aos minérios de estanho e volfrâmio [tungsténio], que nessa altura estavam em grande incremento. Nessa altura, trabalhei imenso com o Rui Baptista, o qual foi comigo depois para a Venezuela para trabalhar em diamantes. O Rui Baptista é mesmo um grande amigo meu e que, aqui neste edifício [Palácio do Raio] em abril [2023], teve uma exposição lindíssima sobre Santa Bárbara, a santa padroeira dos mineiros. A exposição esteve aqui, salvo erro, dois meses, lá em baixo, na sala de exposições. Fazemos aqui muitas exposições sobre diversas áreas, como pintura e escultura. Esta da Santa Bárbara teve de facto uma grande projeção, as pessoas gostaram imenso. Ele trouxe grande parte das "Santas Bárbaras" [estátuas], mas também objetos de sondagens, como testemunhos, rochas, instrumentos vários, foi uma exposição muito bonita!
9. Explique-nos um bocadinho mais da tal sociedade na qual trabalhou quando regressou a Portugal da primeira vez.
Era em Lisboa, na Rua dos Fanqueiros, a Sociedade Portuguesa de Empreendimentos [SPE], que era uma subholding do Instituto de Participações Empresariais [IPE]. Na altura do 25 de Abril as empresas foram todas nacionalizadas, como sabe, e muitas empresas que eram privadas passaram para esta tal IPE. E a nossa empresa era uma subholding, a SPE, que se dedicou à área mineira e à área dos diamantes. Fiquei aí até 1999, onde tive o privilégio de continuar a trabalhar com o doutor Albertino Monforte, com o doutor Eurico, com o José Feliciano, o Rui Batista e com outros geólogos de referência. Uma vida muito cheia. Há pessoas que não esqueço, professores que me deram muito ânimo para percorrer esta vida. Foi também nesse período, quando regressei a Lisboa, que convivi mais de perto com o professor Carlos Teixeira. Ele era daqui de Vieira do Minho. Primeiro, conheci-o ainda a ver relativamente bem, e há um fóssil que descobri num afluente do Rio Cuanza [Angola], quando estavam a fazer poços de prospeção, e que ele classificou e publicou. Depois, aqui em Lisboa, convivia com muitos geólogos e fui posto em contacto com ele por um amigo de Évora, o Francisco Gonçalves. O professor Carlos Teixeira entretanto cegou e íamos, eu e o Francisco Gonçalves, com frequência a uma taberna ali em Lisboa e fazíamos-lhe companhia e tínhamos grande proximidade. E recordo que eu e o doutor Eurico Pereira contribuímos para que fosse criado um centro interpretativo sobre ele em Vieira do Minho. Tentámos adquirir a casa dele para fazer lá o museu. Concretizou-se o centro interpretativo, mas noutro local, porque o casal, os caseiros que viviam lá com ele, não cederam a casa.
10. Em que ano e onde ingressou no curso de Geologia?
Ingressei no curso de Geologia em 1952 e terminei em 1957, na Universidade de Coimbra, na Faculdade de Ciências.
Caricatura na página de Bernardo Reis no Livro de Curso dos quartanistas de Ciências, Uni. Coimbra, 1956.
"Estive ligado a muitas atividades de repúblicas, porque estava na "República dos Paxás"! (risos) E organizei um campeonato inter-repúblicas. Era muito dado a este tipo de iniciativas"
11. Que professores teve?
Os professores Custódio Morais, Cotelo Neiva, Montenegro [de Andrade]... Foram vários que eu agora já não me consigo lembrar. (risos) Mas o professor Cotelo Neiva foi o homem que me deu todo o ânimo e toda a força. Era um grande especialista em geotecnia e foi ele que estudou a geotecnia de praticamente todas as barragens do país. Era um homem fantástico, dominava várias áreas, era um individuo extraordinário, fora de série e de um humanismo. Foi um homem que me inspirou e devo-lhe muito. Continuámos a ser muito amigos até ele morrer.
12. Confesse-nos, era um aluno dedicado ou era um aluno que gostava de Geologia, mas que gostava de se dedicar a outras atividades? (risos)
Eu gostava também de me dedicar a outras atividades e ainda gosto. Eu tenho uma característica polivalente (sorriso), é uma maneira de ser minha, talvez específica. Embora a Geologia esteja em primeiro lugar, tive também uma atividade académica muito ampla. Fiz parte da Direção da Associação Académica, constituída por diversas seções. Entre 1956 e 1957, estive ligado ao grande Decreto-Lei 40 900, que foi a primeira grande contestação. O Salazar, através do ministro Pinto Leite, queria transformar as associações académicas em dependências da Mocidade Portuguesa. E nós fizemos uma grande marcha de luto, desde a universidade até chegar ao Governo Civil [em Coimbra]. Foi um luto permanente, um silêncio absoluto, descendo aquela avenida principal, a Rua Ferreira Borges. Depois, fiz parte da Assembleia Magna, entre 1957 e 1958, e tive como colega da assembleia um futuro primeiro-ministro, o Carlos Mota Pinto, um grande amigo meu. Faleceu muito cedo, em 1985. Estive ligado a muitas atividades de repúblicas, porque estava na "República dos Paxás"! (risos) E organizei um campeonato inter-repúblicas. Era muito dado a este tipo de iniciativas, é uma maneira de ser. Também estive ligado ao CADC (Centro Académico da Democracia Cristã) e fui barítono no orfeão académico de Coimbra.
13. Considera que foi um aluno bom, médio, excelente?
Na altura, considerava-me muito bom. Tirei 16 na especialidade e 15 no curso. Na altura as notas andavam por aí. Fui um bom aluno e gostei muito. Mas digo-o com uma certa humildade. Como já lhe referi, digo que devo muito ao professor Cotelo Neiva, porque eu ia com ele para o campo com frequência, ele levava-me sempre consigo, e de vez em quando dava-me assim uns tostõezinhos, que eu aceitava com todo o gosto! (risos)
14. Qual foi a cadeira/disciplina que menos gostou, ou não gostou tanto?
Houve uma, que foi a cristalografia. Não gostei muito da cristalografia e não sei porquê, talvez pela maneira como as coisas eram lecionadas na altura. Quem me deu a cadeira foi o professor Montenegro. (risos) E ele era um individuo que tinha uma maneira de ser muito própria e não me cativou...
15. E qual foi a sua disciplina preferida?
Foi a Geologia aplicada, que nessa altura existia e era simplesmente Geologia, mas que para todos os efeitos era uma Geologia aplicada, que foi dada pelo professor Cotelo Neiva. E essa disciplina foi o que me motivou muito, mesmo muito. Era uma disciplina de um ano inteiro, porque nessa altura era mais comum as disciplinas serem anuais. Foi precisamente essa cadeira a última que fiz, com que me formei. Depois, tive o respetivo Rasgão [hoje conhecido como "Rasganço"]. Não sei se sabe que era a prática comum em Coimbra rasgar a roupa das pessoas quando se formavam e depois ficava-se praticamente coberto só com a capa. (risos) E em Coimbra convivi com grandes amigos, que estiveram na minha formação, o doutor António Marques Mendes que já faleceu, o doutor António Brito que foi também um grande político, o doutor Vitor Sá Machado que foi um dos homens da Gulbenkian.
Bernardo Reis nos tempos de faculdade. Em cima, à esquerda: caloiros alojados num prédio da rua dos Combatentes, com Bernardo Reis (em cima, à esq.), Vítor Sá Machado (que viria a ser ministro dos negócios estrangeiros e Presidente do Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian), António Marques Mendes (que viria a ser vice-Presidente da Assembleia da República e eurodeputado), Orlando Mendes (advogado) e Acácio Ferreira Leite (professor do liceu), em 1952. Em cima, à direita: grupo de finalistas, com Bernardo Reis e Jorge Paiva, em 1958. Em baixo: grupo de finalistas, com Bernardo Reis e Vasco Faria, em 1958. Imagens retiradas de Lobo de Araújo & Esteves (2018).
"(...) mas temos de ser pragmáticos, tomar decisões sem reuniões de muito tempo. Ainda hoje, saio de reuniões e o que é que se fez? Nada."
16. Quando entrou no curso de Geologia, eram quantos?
Éramos 10. Tivemos sempre uma boa relação e fomos acompanhando o percurso de todos. Nessa altura, a área mineira estava em grande desenvolvimento e todos tiveram trabalho na área da prospeção mineral. Uns foram, por exemplo, para a área do volfrâmio e do estanho, mas para os diamantes fui eu o único. Fomos todos exceto o professor [Martim] Portugal Ferreira, que foi meu colega e grande amigo, e que faleceu recentemente, há dois ou três anos [2021], que acabou por ocupar o lugar de Assistente em Coimbra, após o convite que não aceitei do professor Cotelo Neiva. E não sei se sabe, mas o Portugal Ferreira chegou a diretor não só do departamento, mas também da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra. Foi um homem de referência e um grande amigo que eu não esqueço. Convivi também imenso com o professor Fernando Noronha e com o doutor António Ribeiro, são pessoas que eu não esqueço.
17. Então e como é que se sentiu quando pegou pela primeira vez num diamante? Que variedades prospetou?
Não me dizia nada! Um quilate, sabe quanto é, em peso? São dois décimos de um grama! (risos) E a prospeção mais cara na altura, era a prospeção petrolífera, da qual o meu amigo Rui Baptista foi uma grande referência, não só em Portugal, mas também no Brasil. A prospeção do diamante, veja-se o que era, o trabalho que se tinha, muitas vezes, para encontrar dois décimos de grama! E havia uma zona em Angola, em Maludi [Província Lunda Norte], que tinha o diamante mais valioso que havia no mundo, porque era um branco-azulado, mas sem incrustações, valiosíssimo. Depois, também estive a trabalhar na República Centro-Africana, onde apareciam os diamantes rosa. Gostei imenso de trabalhar lá, no tempo do imperador [Jean-Bédel] Bokassa. Porque eu, ao fim ao cabo, ia como consultor e orientava os prospetores nos trabalhos em diversas partes. Também estive na Venezuela, cheguei também a estar na Colômbia, nas esmeraldas, em Muzo e em Cusco. Esmeraldas lindíssimas, as mais bonitas esmeraldas do mundo. Depois estive em Perth, na Austrália, que é hoje o maior produtor de diamantes, e fui convidado pelos ingleses para ser o primeiro administrador dessa empresa em Perth. Mas como eu já tinha sacrificado muito a família, entendi que devia voltar para Portugal. A Austrália é longe, são 24 horas de viagem! (risos) Mas gostava de ter tido essa experiência e visitei o país. Voltei a Angola novamente entre 1990-92, mas nos vinte anos em que estive em Lisboa acabei por visitar vários países.
"Portugal precisava de olhar para si a sério (...) precisa mesmo de se debruçar e de se preocupar em fazer aquilo que interessa para o país. Seja na área das minas, seja na área social, seja em que área for, isso é fundamental para termos um país que cresça"
18. Sabemos que adorou a sua vida profissional, muitas coisas correram bem, mas vai ter de nos confessar qual foi a atividade que menos gostou de fazer...
Vou-lhe dizer que é muito difícil responder a essa pergunta, porque eu gostei sempre de fazer tudo. As coisas que não gostei de fazer foram as que não era para fazer com pragmatismo, quando se dizia "É para fazer isto", mas depois é conversa, mais conversa, não sei quê, muitas reuniões e muitas coisas, mas conclusões, nada. Eu trabalhei imenso com os ingleses em Angola e eles só davam cinco minutos de tolerância para iniciar uma reunião, quem não chegasse a tempo, não entrava. E aprendi a fazer relatórios, podiam ter 20, ou 30 ou 40, 50, 60 ou 100 páginas, mas no princípio do relatório era obrigatório eu fazer duas páginas, onde se fazia uma síntese para que a administração ou quem estivesse ligado à área mineira ou geológica o pudesse analisar. Eu e colegas meus. Se entendessem que aquelas duas páginas não eram suficientes, passavam para o consultor, e o consultor lia então o relatório e analisava e via outras propostas. Mas, geralmente, aceitavam sempre as minhas duas páginas. Eu gosto de reuniões, mas temos de ser pragmáticos, tomar decisões sem reuniões de muito tempo. Ainda hoje, saio de reuniões e o que é que se fez? Nada. Hoje desagrada-me a comunicação social e os telejornais, mas isso não faz parte aqui da conversa. Portugal precisava de olhar para si a sério: o que é que é preciso, vamos ver aqui nesta área o que é preciso. Eu não sou político, atenção, nem nunca quis ser. Fui convidado para ser político, nunca quis. (risos) Secretário de Estado da Energia? Não quis ser. Trabalhei com um grande homem que foi o engenheiro [António José Baptista] Cardoso e Cunha, o primeiro comissário europeu [para os assuntos Marítimos e as Pescas], para uma grande empresa agrícola ligada à produção de cogumelos. E quando ele foi para comissário europeu, eu é que o fui substituir, eu e outro colega meu. Um ligado à produção e outro à gestão, nessa altura eu era mais gestor, era um misto, geólogo e gestor, fazia tudo. (risos) Eu gosto de concretizar. Acho que Portugal precisa mesmo de se debruçar e de se preocupar em fazer aquilo que interessa para o país. O que é que é importante realizarmos para o país? Seja na área das minas, seja na área social, seja em que área for, isso é fundamental para termos um país que cresça. E o que é que significa? Os jovens que deviam ficar aqui, a quem nós pagámos [a formação], estão a emigrar, porque não lhes dão condições. Mesmo na vossa área, a universitária [carreira académica], isso acontece. Eu tenho um sobrinho que está à frente de um grande centro de investigação em Itália e que quis ficar aqui em Portugal, mas não lhe davam meios para trabalhar. Ele disse "Eu não quero dinheiro, quero meios para trabalhar" e não lhe davam meios humanos nem meios materiais, de maneira que as pessoas depois vão-se embora. E nós somos grandes, lá fora, sabe? Eu andei lá fora, pelo mundo, e vi que os portugueses foram e são grandes. Porque é que não aproveitam quando eles regressam para dar força a este país?
19. Admite que é um geólogo de campo, adora Geologia, mas foi ao longo do tempo transitando para esta outra vertente. O que é que o fascina na parte da gestão e como começou?
A gestão fascina-me porque eu gosto de correr o
risco e gosto de fazer projetos. E quem não correr riscos, não faz nada. Já viu o que é gerir uma empresa como foi a
Companhia de Diamantes de Angola? Fui o último diretor geral e administrador residente, não deixei de ser geólogo, mas fui subindo e
cheguei até aos chamados Serviços de Apoio Geral. O que eram? Eram uns serviços que tinham a divisão de aviação, com helicópteros e aviões, a divisão dos
serviços industriais, a divisão da construção civil, de hotéis, estradas e
casas, tinham a Geologia, a geofísica, tinham a área hoteleira também. E tive uma
excelente convivência com o presidente Agostinho Neto. Lembro-me da última
viagem que fiz com o Agostinho Neto, a 11 de novembro de 1977, íamos de
helicóptero e ele quis visitar Lucapa. E eu tinha sido o primeiro habitante em casa de construção definitiva de lá! Quando cheguei a Angola, no início dos anos de 1960, vivia numa casa de pau a pique e com as paredes de
capim. O teto eram lonas. E no escritório, era a mesma coisa. Isto enquanto não se construiu a primeira casa em Lucapa de construção
definitiva. Depois casei. Na Companhia de Diamantes de Angola éramos
obrigados a fazer seis meses de experiência e só depois de ver se nos adaptávamos é que
deixavam ir a família. Foi assim que eu fui o primeiro habitante em casa de construção definitiva em Lucapa, que hoje é das maiores cidades da Lunda Norte! Lucapa vem de onde? Do rio Luachimo
e do rio Chicapa. E quem lhe deu esse nome? Um grande amigo meu, um grande
investigador, o engenheiro René Delville, belga, com quem tive o prazer de trabalhar. Foram as teorias dele, o célebre graben do Lucapa, porque há uma
série de grabens desde a zona Nordeste de Angola até chegar à zona de
Moçâmedes, que permitiram chegar à descoberta dos
diamantes na região. Este René fez a primeira viagem por terra, desde Bruxelas até Lunda, de
carro, em 1935-36. Também estive lá com um grande geólogo dos diamantes a nível mundial, o Michel Bardet. Tem um livro, que são três conjuntos, sobre os diamantes a nível mundial, e para Angola é a mim que cita. Fui considerado um
dos maiores especialistas a nível mundial na área dos diamantes, na pesquisa e
prospeção, e não estou a dizer isto por vaidade. Como aprendi com os Ingleses, eu
não autorizo que ponham "Doutor" em qualquer documento meu. Sou também Comendador, foi-me atribuída a comenda pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa, mas
como lhe digo, também não autorizo que metam "Comendador". (risos) Sou Bernardo
Reis.
"A gestão fascina-me porque eu gosto de correr o risco e gosto de fazer projetos. E quem não correr riscos, não faz nada"
" (...) não autorizo que ponham "Doutor" em qualquer documento meu. Sou também Comendador (...) mas também não autorizo que metam "Comendador". Sou Bernardo Reis."
20. Como é que decidiu vir para aqui, para a Santa Casa da Misericórdia?
Eu terminei a minha atividade geológica em 1999, em Lisboa. Nessa altura tive duas hipóteses, podia continuar na minha área geológica, porque tive imensos convites, quer para ir para a Austrália, quer para continuar com um projeto em Angola - mas entendi que, por já ter prejudicado muito a minha família, viria aqui para Braga, onde estava a minha mulher e os meus filhos - e foi nessa altura que resolvi, embora dedicado ainda à Geologia, embarcar na área social. Apareceu esta possibilidade de me dedicar à economia social, na Santa Casa da Misericórdia de Braga, onde estou desde 1999 e onde comecei a exercer as funções de Provedor desde 2003. Até à atualidade, porque sou ainda Provedor. Por outro lado, estive também ligado à Direção Geral das Misericódias Portuguesas entre 2010 e 2015, o que me deu uma abrangência enorme de todas as misericórdias ao nível do país, que são 393. Percorri o país todo, o que contribuiu também para conhecer o património das misericórdias e, por conseguinte, para que fosse preservado muito património artístico e material, ligado à arte sacra. Por sua vez, isto contribuiu para a abertura de museus, núcleos museológicos, locais fundamentais para a história das misericórdias. É um prazer enorme estar aqui. Em 2011, foi-me devolvido um conjunto de edifícios com 47117 m2, que era o antigo Hospital de São Marcos, constituído por cinco edifícios, e que, de um momento para o outro, ficou completamente vazio. E aí surgiu um problema: "Vou ter de recuperar estes edifícios". E assim fiz. Felizmente, consegui, com ajuda de todos os meus colegas, pois tive sempre grandes equipas a trabalhar comigo. Três deles foram dedicados ao Hotel Vila Galé Collection, que é como sabe um dos melhores grupos de hotéis em Portugal e que, neste momento, é o segundo maior grupo hoteleiro no país. Outro foi destinado a albergar o Hospital dos Lusíadas. Este, o Palácio do Raio propriamente dito, onde nós estamos, foi recuperado e inaugurado em 2018, quando o doutor João Soares era Ministro da Cultura. E este é um dos edifícios mais icónicos da cidade de Braga, muito visitado, com visitas de diversas partes do mundo, muito conhecido especialmente pela frente em azulejo azul. É constituído por 18 salas, ligadas maioritariamente à história da Misericórdia de Braga, que foi fundada em 1513, embora possivelmente reporte a 1504-1508, ao tempo do grande Arcebispo e Senhor de Braga. E foi isso que me deu um ânimo. A grande experiência que eu tinha adquirido nos diversos locais onde estive, como geólogo de campo, deu-me este dinamismo para continuar esta vivência permanente e não parar.
21. Quais as suas publicações favoritas de Geologia?
São publicações que incluam artigos com sentido pragmático e orientados para chegar a determinados fins. Quer seja na área mineira, quer seja na área geológica, quer seja na área da geotecnia. Para mim é fundamental. Os artigos do professor Carlos Teixeira, do professor Cotelo Neiva, por exemplo, mais ligados à área da geotecnia, da pesquisa mineira... eu gostava imenso desse tipo de artigos. Eram trabalhos que mexiam comigo e que me lembravam que tinha que me centrar nisso: "Bem, vou pesquisar, vou ver, ver com mais pormenor, vou desenvolver mais, vou ver se chego lá". Sempre gostei dos assuntos objetivos, concretos. Não quer dizer que não tenha grande apreço pelos investigadores, no conceito da investigação propriamente dita, porque tenho. Mas o meu campo de ação era mais pragmático, mais objetivo.
22. Numa vida tão preenchida como a sua, eventos marcantes não faltarão, mas consegue identificar um especial?
Vou-lhe dizer, foi um que não aconteceu. Tive pena de não seguir a vida académica. Depois de ter seguido o caminho pragmático, tinha projetado precisamente voltar à universidade. E apresentei, no 24º Congresso Internacional de Geologia, em Montreal no Canadá, a nota preliminar sobre os kimberlitos de Angola e o seu controlo tectónico, e a minha ideia era partir daí para uma tese de doutoramento. Fui convidado quer pelo professor Cotelo Neiva, em 1974, para a Universidade de Coimbra e pelo professor Montenegro [de Andrade] para a Universidade do Porto. Depois, quando regressei de Angola em 1977 e foi fundada a Universidade do Minho, o primeiro reitor, [Carlos Alberto] Lloyd Braga, convidou-me para professor. E a minha ideia era, precisamente, fazer o meu doutoramento. Mas estando já como gestor, tendo sido confrontado com os grandes problemas que surgiram em Angola, entendi seguir a área da gestão. Ainda chegámos a criar aqui um gabinete, eu, o José Feliciano e o doutor Eurico Pereira, para darmos pareceres na área dos diamantes para diversas partes do mundo. Mas depois acabei por dedicar-me mais aqui à área social, deixando cair o projeto da tese. (risos)
23. E algum momento mais embaraçoso, houve?
Desses houve vários, passei por momentos muito difíceis, principalmente em Angola, em que enfrentei problemas muito complicados. Principalmente nos pós 25 de Abril, em que encontrei-me perante situações muito difíceis, desde ter uma pistola metralhadora aqui encostada ao peito, que felizmente não disparou, ou aviões onde eu ia em serviço serem bombardeados. Foram momentos difíceis. E, como geólogo até, muitas vezes nas investigações ia naquelas canoas de madeira, nós não sabíamos se havia uma cascata mais à frente, e uma vez também me salvei de não ir pela cascata abaixo! (risos) Eu e os habitantes locais que me acompanhavam. Sempre tive uma relação muito boa com as pessoas que são autóctones, nunca tive problemas porque, enfim, apreciavam a minha maneira de ser e gostavam de estar e conviver comigo. E aliás, cheguei a ser até inclusivamente padrinho de casamento de ministros em Angola, com quem convivi muito. E convivi com grandes geólogos de lá. Sim, vivi algumas situações difíceis, mas são aquelas que, talvez, a esta distância, me dão mais prazer. (risos)
24. Agora uma pergunta importante: qual é o segredo para chegar aos 89 tão bem?
Olhe, o meu é este. Aprendi a fazer uma alimentação especial quando vivia na selva, quando vivia no mato. Portanto, faço uma alimentação muito à base de legumes, de vegetais e fujo à gordura. Nós, por vezes, tínhamos imensas dificuldades, como nas Terras do Fim do Mundo [Kuando-Kubango], por onde o José Feliciano também andou mais recentemente. Aí, frequentemente, havia pessoas que não tinham alimento e eu, o que levava, dava-lhes, e depois ia-me alimentando do que os indígenas comiam. (risos) Uma vez cheguei a Springbok na África do Sul, perto da fronteira com a Namíbia, e só via pedras e deserto, não via nada, nem vegetação, e nessa noite choveu. No outro dia de manhã, quando acordei, tudo coberto de vegetação e flores. Foi dos espetáculos mais bonitos que conheci no mundo. São estes momentos... Foi uma experiência muito rica! Lembro-me também de ir numa avioneta e aterrar no deserto porque, entretanto, o gasoil acabou. Isto aconteceu-me na Venezuela. Procurámos um sítio sem árvores, sem terra, sem termiteiras grandes, enfim. Mas nessa altura tínhamos um contacto, chamávamos outro avião e vinham-nos buscar. São peripécias!
26. Queria saber se tem algum hobby além deste seu trabalho?
Gosto de escrever, escrevo muito para o jornal Diário do Minho. Gosto muito de escrever, não sobre Geologia, mas sobre problemas de caráter social, do caráter político, embora como já disse, não sou político. Gostava muito de fazer artigos, também, ligados à área da Geologia. Infelizmente, o último que fiz saiu em 2010, porque, como sabe, implica muita concentração, muita investigação, e eu deixei de ter tempo. Porque esta dedicação à Misericórdia de Braga, e o período em que estive à frente das misericórdias de 2010 a 2015, cuja sede é em Lisboa, tirava-me muito tempo. Sou uma pessoa que gosta de se dedicar e tenho pena de não ter prosseguido com a Geologia, lá fora, na minha área, que era a área dos diamantes.
Intraclasto
Pantómetro e bússola
Hoje em dia, ligamos o telemóvel e ele transforma-nos num pontinho exato num mapa ou numa fotografia aérea, com coordenadas detalhadas. E, antes da tecnologia GPS, o trabalho de campo fazia-se sobre cartas topográficas ou corográficas, com maior ou menor detalhe. Nada disso nos é estranho. Mas, e se nada disso existir, nem tecnologia moderna, nem qualquer série cartográfica? Foi essa a realidade do Bernardo em Angola. Para registar as localizações das formações diamantíferas e para conseguir voltar a esses locais posteriormente, eram essenciais dois instrumentos: a bússola e o pantómetro. Enquanto que com o primeiro, estamos todos familiarizados, já o pantógrafo, uma espécie de grafómetro com bússola, menos. Este permite medir distâncias angulares em levantamentos topográficos. Monta-se sobre um tripé e permite fazer localizações exatas através da medição de ângulos que se leem numa pequena luneta.
Geomanias
Rocha preferida? Kimberlito
Mineral preferido? Diamante
Fóssil preferido? Trilobites
Unidade litostratigráfica preferida?
O conglomerado de Calonda
Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Minerais não-metálicos
Era, Período, Época ou Idade preferido? Cretácico, o sistema dos kimberlitos e conglomerados de Calonda!
Trabalho de campo ou de gabinete? Campo
Martelo ou microscópio? Martelo
Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão
Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura
Ortóclase ou Ortoclase? Ortoclase
A vida do Bernardo Reis foi detalhadamente documentada por Maria Marta Lobo de Araújo e Alexandra Esteves, num muito cuidado livro publicado em 2008. Disponível aqui, convidamos a darem uma espreitadela!